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domingo, 6 de janeiro de 2008

Papo de anjo

- Então... você é um anjo, é?
- É. Sou.
- Cadê suas asas?
O anjo suspirou e revirou os olhos. E ele que nem sabia que anjos reviravam os olhos...
- Sempre esta pergunta! Que coisa. Quando você fala que é um bípede alguém pede pra ver suas pernas? Que grosseria. Francamente!
A indignação angelical é uma coisa surpreendente.
- Desculpe aí, foi mal....
- Tudo bem, sem problema.
- É que, sei lá. Nunca estive assim, cara a cara com um anjo. Tenho tanta coisa pra perguntar que nem sei por onde começar.
- Pode perguntar o que quiser. Só, por favor, vamos excluir perguntas anatômicas, ok? Parece que vocês humanos só conseguem pensar nisso: o sexo dos anjos, o umbigo de Adão, asas...
Quem diria: anjos também têm perguntas proibidas.
- Não é pergunta proibida. É só que tem coisas muito mais relevantes para o público. Por que não falar sobre nosso trabalho?
E não é que eles lêem pensamentos?
Novo suspiro, novo revirar de olhos. Resolvo fazer logo minha pergunta, antes que o anjo perca a paciência.
- Olha, se Vossa Santidade...
- Vossa Santidade? E eu lá sou papa?!
- Desculpe, mas nunca falei com um anjo antes, não sei como me dirigir a vocês....
- Tudo bem, tudo bem. Pode me chamar de Zé.
- O quê?
- Algum problema com meu nome?
O anjo já estava ficando irritado novamente. Eu só estou dando fora!
- É que achei que nome de anjo terminasse sempre com "el". Sabe como é... Lelahiel, Helahiel, Ahadiel....
E agora foi minha vez de ficar invocado com a risadinha zombeteira do anjo.
- Ah, isso... foi coisa do Miguel, aquele piadista. Pegou um humano impressionável e deu a entender que todos os nomes rimavam com os dele. Sabe como é. Tirando um sarro. Daí o cara levou a coisa sério, como uma revelação e divulgou no mundo todo. Hahaha.
- Hum. Ok. Certo.
Fazer o que. Fiquei desconcertado.
- Olha... Zé... o que eu quero saber é qual a função de vocês aqui na Terra.
- E qual a sua função aqui na Terra?
- A minha?
- É, a sua.
- Não sei...
- Se você não sabe nem a sua, por que quer saber a minha?
- É que... ahn... eu...
- Próxima pergunta.
- Hum, bem. Vocês existem desde o início do universo?
- Sinto muito mas não posso responder a esta pergunta.
- Por que não?
- Restrição contratual.
- ?
- É. Há uma cláusula de confidencialidade no meu contrato de trabalho que devo respeitar. Esta pergunta viola a cláusula.
- Contrato de trabalho? Vocês também têm isso?
- Claro, por que não? Também temos direitos, oras.
Momento de silêncio.
- Então, vai me fazer mais alguma pergunta? Minha agenda é meio cheia.
Pra falar a verdade, eu estava ficando sem perguntas. As poucas respostas invalidaram as outras perguntas. As que não foram invalidadas eram de cunho anatômico. Não sabia o que perguntar.
- Posso sugerir uma?
- Hã?
- Posso sugerir uma pergunta, já que você está sem idéias?
- Sim, claro....
- Pergunte meu sabor preferido de sorvete.
- Sabor de sorvete?
O anjo estava exasperado. Divertido, mas exasperado.
- É impressionante como vocês humanos não se interessam pelas coisas relevantes!
- Bem, então, qual o seu sabor preferido de sorvete?
- Flocos! - repondeu o anjo, feliz por eu ter finalmente parado de fazer perguntas cretinas.
- Agora, sinto muito mas seu tempo acabou. Preciso ir. Outros compromissos...
- Ah. Certo. Obrigado... Zé.
***
Entrevistar um anjo foi muito mais difícil e revelador do que eu imaginava. Eu ainda fiquei observando enquanto o Zé ia embora, para ver se ele ia se desmaterializar, ou sair voando, sei lá. Para minha decepção, ele levantou o braço para chamar um táxi, entrou e partiu acenando. Na minha decepção, por pouco não vejo uma grande pena branca, muito macia e brilhante, vir voando devagar, flutuando graciosamente no ar. E parar finalmente na ponta do meu nariz.

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